QUARTO DIA À BORDO
A rotina de ontem foi a mesma. Pizza, filmes no vídeo, desta vez uma comedia com Steve Martin. Tento explicar o Nordeste para René. Falo da música, dos costumes,da gente, íntegra e persistente na luta contra um clima hostil;o desastre da seca,os rios de dinheiro gastos erroneamente,sem resolver nada;sem contar com o que fica pelo caminho forrando os bolsos dos senadores e deputados.;falo do artesanato.da luta no cultivo da terra,da falta de chuva,da fome sempre cercando as choupanas,e os governos que se sucedem fazem como peixe:nada;O capitão sugere que eles sejam todos fuzilados;concordo plenamente com ele.
Avançamos o relógio mais uma hora. Notei que o mar amanheceu mais encapelado,embora brilhe o sol.Soube das novidades.Vamos ter mudanças na tripulação. Ramón, o simpático ajudante de cozinha.que sempre me serve o breakfast,volta para casa e de lá,vai com a mulher para a Austrália;o segundo oficial também vai embora,ele é tão legal,quem será que vai substituí-lo?
Penso que talvez o melhor tempo de viagem seja mesmo este; sem portos, nem chateações, sem explicações nem cobranças; cada um sabe o que lhe compete fazer e faz; À nossa volta só o mar, eh! O mar que não pede nem exige.
Almoço com eles o feijão que trouxe de casa; imagine o feijão de Edite saboreado há milhas e milhas de Salvador, em um ponto qualquer do Atlântico Sul; decerto um feijão histórico; após o almoço, chá, simpatia e vídeo. Revejo "Sleepless in Seattle".
Não recebo boas noticias de Ray; parece que vamos ter mau tempo; ele me mostra uma carta de navegação britânica - uma "weather cart” que eles recebem diariamente informando tudo sobre o tempo; uma espécie de boletim; um L mostra uma baixa pressão, ou seja, tempestades com ventos de até 30 km por hora; o controle dos ventos é por tracinhos: 10 km/ 20 km//30 km///e por aí vai. A letra H indica baixa pressão;tudo isto por causa da proximidade da África e a passagem de Gibraltar.Não ha remédio; preparo-me para ser apresentada á minha primeira tempestade em alto mar;embalei minhas coisas quebráveis fiquei aguardando os acontecimentos;não tinha medo,só curiosidade.Logo começou a ventar demais;estávamos navegando 367 milhas por dia a uma velocidade de 14 nós.Amanhã ás 4.40 da madrugada avistaremos Cabo Verde.
Anoitece tarde nesta latitude; são quase 19hs e ainda é dia claro. A noite,como uma dama delicada,estende seu manto devagar,cheia de dedos,como evitando incomodar; há pouco,na coberta,o sol exibiu seus belos raios dourados com nuances cor de rosa sobre a esteira tranqüila das ondas;um espetáculo que se repete desde o principio dos tempos,mas que nunca deixa de nos encantar;eu assisti,outros depois de mim assistirão,os navegadores antigos,desde os fenícios assistiram e um redondo OH! De admiração esteve e estará em todas as bocas; porque aqui se está em comunhão com o Infinito; as coisas pequenas se apequenam mais ainda, pasmas diante da harmonia da natureza. Estou sentada na coberta desde ás 16hs e não me canso de ver,sentir e admirar a beleza deste espetáculo do cotidiano.Aqui é onde espírito e matéria se encontram e se buscam,talvez a escada de Jacó que une a terra ao céu.
Embalada pela saudade pensei em cada um dos meus filhos, senti suas presenças, minha mãe e a força das suas preces me envolvendo docemente. como uma armadura contra o mal;pensei no Raul que proporcionou tudo isto,a chave secreta que mudou minha existência.Todos tão longe,tão perto...È a hora do Ângelus;o dia se despede e a saudade é uma dorzinha gostosa,confortável como os instantes do amor.
Uma poeira estranha invade o navio; poeira, aqui?Será que estou tendo alucinações?Estamos perto da África e o pó do Saara chega até aqui trazido pelos ventos. São sete horas da tarde neste hemisfério norte que cruzamos no momento. Hora de descer e ajudar na cozinha;faremos lasanha para o jantar.Entro no meu quarto e a primeira coisa que vejo é o retrato de Raul sorrindo cúmplice para mim.
IMG:Francis e eu,no camarote,esperando a tempestade.
Ray Lapoio,explicando o radar
Eu,observando as ondas se formarem.
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