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sábado, 9 de janeiro de 2010

DIÁRIO DE BORDO CAP:IX




5º dia á bordo

Venho do breakfast; dia nublado, mar calmo. Capricho na toilette.lavo o cabelo tudo para me preparar para descer em terra.Deve levar ainda uns dois dias,aqui a gente perde um pouco a noção do tempo e o relógio vira um acessório inútil,pelo menos para mim que não tenho obrigações.Tudo parece simples:quando desponta a aurora,com seus dedinhos cor de rosa,abrindo a cortina do dia,sei que é hora de acordar; sol a pino,hora do almoço;crepúsculo,hora do jantar,simples assim.Penso que se estivesse em Salvador há muito já estaria correndo pela rua,numa azáfama,pegando os ônibus da Sul America,debaixo de um sol escaldante,caçando alguém para vender,cobrar ou pagar:a eterna corrida de ratos,trabalhar o dia inteiro,abrir mostruário,fechar mostruário,negociar,exigir,pechinchar,ouvir com simpatia os problemas da clientela,quase sempre os mesmos:falta de dinheiro(cada vez sobra mais mês no fim do meu dinheiro),falta de atenção,frustrações,sonhos desfeitos,uma vida vivida igualzinha todos os dias;me parece que as pessoas não vivem-digamos-50 anos;vivem 50 vezes o mesmo ano.
Não me queixo do meu trabalho, gosto dele,foi minha escolha ;sei convencer; no fim do dia a colheita é boa, mas a luta é intensa; venda não é trabalho para fracos, principalmente a venda porta - a - porta-. Aqui não tenho stress,dores de coluna,apesar de subir e descer escadas inúmeras vezes durante o dia,tudo funciona bem,meu humor é ótimo e o ar que respiro é tão puro como o do dia da criação.Aprendo muito,inclusive a ser menos individualista,aperfeiçôo-me mais ainda,procuro ter uma visão diferente das coisas.Penso muito.O suave balanço do navio é o melhor tranqüilizante que há;durmo bastante;é só deitar e apagar.


O mar está azul-mediterrâneo; um belo sol brilha sobre as ondas. Às 11 da noite passaremos por Cabo Verde.Vai estar bem escuro,mas,mesmo assim, tentarei ver alguma coisa nem que seja o contorno do monte,envolto na escuridão;o lendário Cabo Verde dos meus livros de Historia:..as terras a oeste de Cabo Verde pertencem a Portugal?Já nem lembro mais. Se naquela época alguém me dissesse que eu passaria tão perto,de navio rumo a Gênova e depois,de volta para o Brasil,eu chamaria este alguém de louco;Cabo Verde,porta do mar Tenebroso;outros visionários passaram por aqui,Colombo,Cabral;estou em boa companhia.
O capitão quer chegar a Tenerife ás 16hs de segunda feira, para pegar o comercio aberto. Pretendo comprar alguma coisa.Aproveitarei o domingo para fazer uma exposição de minhas peças para a tripulação;se vender, só precisarei me preocupar em comprar e passear.
Minhas proveitosas conversas com Ray continuam; hoje o assunto foi Filipinas, seus pais natal. O idioma oficial é o tagalo,porem há um monte de dialetos espalhados pelo país;Ray é da região de Negos,fala hiloílo;o capitão é da ilha de Mindanao;Filipinas fica a uma semana de barco de Taiwan,em pleno mar da China.Francis diz que não conhece um filipino velho,todos usam uma hena que tinge o cabelo de preto e têm a pele lisa e jovem;não sei o que fazem,são muito vaidosos e se cuidam bem;capricham nos exercícios físicos e na alimentação saudável,á base de peixe.

O primeiro oficial, ou THE FIRST, é casado e pai de três filhos. Sua esposa cuida do lar,no bom estilo conservador,que os filipinos tanto apreciam.Tanto conservadorismo faz sentido;ele receia que ,com o pai embarcado e a mãe trabalhando fora as crianças caiam nas malhas dos dois maiores pesadelos deste país:as drogas e a prostituição.
O povo deste minúsculo país, na verdade um arquipélago, que já sofreu tanto com o desgoverno dos Marcos-Ferdinand e Imelda - é extremamente religioso, supersticioso, alegre e fácil de conviver; Disciplinados, responsáveis e cumpridores de seus deveres, conseguiram seu lugarzinho ao sol nesta profissão que antes era apanágio dos europeus; assim, eles encontraram um meio de prosperar e levar conforto ás suas famílias; para os armadores é ótimo já que eles ganham bem menos que um comandante europeu por exemplo, sem contar que os marujos europeus são muito chegados á uma caninha enquanto os filipinos só bebem chá.


Já passa da meia noite; sento perto do telefone esperando um chamado da ponte avisando da proximidade de Cabo Verde
Amanhã e domingo serão mais dois dias em alto mar; a Europa está chegando com suas atrações e seu fascínio; muita coisa para ver e fotografar.

Aos poucos, vou me entrosando neste mundo fechado da navegação; um mundo fervilhante que gira em torno dos navios. Muita gente sobrevive dele,ao redor dele ou por causa dele;há o “ship-chandler”que providencia o abastecimento do navio;há um provedor para o supermercado,para a padaria,para as bebidas;há as agencias locais que representam as grandes companhias internacionais e que recebem ou captam os pedidos de carga;há os engenheiros de refrigeração que consertam os containeres danificados e cobram uma fábula pelo trabalho de pouco mais de uma hora.Ainda há os agentes como o Raul,que prestam assistência á tripulação, providenciam a documentação do navio e a arrumação e conferencia da carga.Ha os que faturam seu dinheirinho vendendo espaços para a carga;e como em todo lugar ,tem também os mafiosos,os atravessadores,aqueles que só querem se dar bem;sem falar nos estivadores,os motoristas contratados para levar e trazer comandante e tripulação,nos hotéis onde se hospedam

Com os práticos é outra estória: há uma relação de amor e ódio entre eles e os comandantes; os comandantes cismam com eles; não é em todos que confiam; ainda no porto o ship-chandler liga para o comandante á bordo e recomenda tal prático, que por sua vez, ao chegar primeiro no navio não se esquece de pagar o favor recebido oferecendo ao comandante o cartãozinho do shipchandler; todo um pequeno mundo periférico ganhando dinheiro graças ao navio.

Os comandantes são uma fauna á parte: há os iranianos e árabes que não falam com mulheres, só tratam de negócios com homens; há os que dão preferência ao shipchandler que prometer lhe arranjar uma garota bonitinha, carinhosa, ”limpinha”, de preferência de família. há os angolanos pretos retintos,só os dentes aparecem,porém solenes,cheios de prosopopéia.Os alemães vão de um extremo a outro:ou são bem arrumados,impecáveis nos seus uniformes elegantes,com seus navios funcionando com a precisão germânica ou são esculhambados e barulhentos;bebem até cair e adoram uma confusão.Enfim é um mundo fascinante,diferente,competitivo e de certa maneira,perigoso;um mundo onde rola muito dinheiro e também muito mau-caratismo,muito trabalho e muita patifaria,mas quem está dentro não quer sair.
Cabo Verde que vi, não vi; escuridão total. De longe brilharam as luzes da Ilha do Fogo,mas tão tênues e distantes que quase não se percebiam.O “second”ofereceu-me um café com leite no deck;quase não enxerguei a xícara;tentei olhar a ilha pelo binóculo.Nada.Desisti.See you later,amigo;talvez na volta.
Adiantei o relógio mais uma hora; Serão mais três até Barcelona.
Oba acabei vislumbrar Cabo Verde, iluminado como um presépio; eram as duas da madrugada; o céu estava lindo; a Via Láctea cintilava num céu límpido; localizei o Cruzeiro do Sul; com o binóculo se vê bem o contorno da cruz. Foi um espetáculo inesquec ível.
IMG:O Zim Uruguay,singrando os mares
O First,no comando

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