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segunda-feira, 13 de setembro de 2010

EU SEI,MAS,NÃO DEVIA...



Eu sei, mas não devia


Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos

e a não ter outra vista que não seja as janelas ao redor.



E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.

E porque não olha para fora logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.

E porque não abre as cortinas logo se acostuma acender mais cedo a luz.

E a medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.



A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.

A tomar café correndo porque está atrasado.

A ler jornal no ônibus porque não pode perder tempo da viagem.

A comer sanduíche porque não dá pra almoçar.

A sair do trabalho porque já é noite.

A cochilar no ônibus porque está cansado.

A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.



A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra.

E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja número para os mortos.

E aceitando os números aceita não acreditar nas negociações de paz,

aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.



A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir.

A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.

A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita.

A lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.



E a ganhar menos do que precisa.

E a fazer filas para pagar.

E a pagar mais do que as coisas valem.

E a saber que cada vez pagará mais.

E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas que se cobra.



A gente se acostuma a andar na rua e a ver cartazes.

A abrir as revistas e a ver anúncios.

A ligar a televisão e a ver comerciais.

A ir ao cinema e engolir publicidade.

A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição.



As salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.

A luz artificial de ligeiro tremor.

Ao choque que os olhos levam na luz natural.

Às bactérias da água potável.

A contaminação da água do mar.

A lenta morte dos rios.



Se acostuma a não ouvir o passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães,

a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer.



Em doses pequenas, tentando não perceber, vai se afastando uma dor aqui,

um ressentimento ali, uma revolta acolá.

Se o cinema está cheio a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.

Se a praia está contaminada a gente só molha os pés e sua no resto do corpo.



Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana.

E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo

e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.



A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.

Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se

da faca e da baioneta, para poupar o peito.

A gente se acostuma para poupar a vida que aos poucos se gasta e, que gasta,

de tanto acostumar, se perde de si mesma.

BIOGRAFIA



As escritoras Marina Colasanti e Miriam Sales na FLIMAR,em Maceió.


Marina Colasanti (Asmara (Etiópia), 1937) chegou ao Brasil em 1948, e sua família se radicou no Rio de Janeiro. Entre 1952 e 1956 estudou pintura com Catarina Baratelle; em 1958 já participava de vários salões de artes plásticas, como o III Salão de Arte Moderna. Nos anos seguintes, atuou como colaboradora de periódicos, apresentadora de televisão e roteirista. Em 1968, foi lançado seu primeiro livro, Eu Sozinha; de lá para cá, publicaria mais de 30 obras, entre literatura infantil e adulta. Seu primeiro livro de poesia, Cada Bicho seu Capricho, saiu em 1992. Em 1994 ganhou o Prêmio Jabuti de Poesia, por Rota de Colisão (1993), e o Prêmio Jabuti Infantil ou Juvenil, por Ana Z Aonde Vai Você?. Suas crônicas estão reunidas em vários livros, dentre os quais Eu Sei, mas não Devia (1992). Nelas, a autora reflete, a partir de fatos cotidianos, sobre a situação feminina, o amor, a arte, os problemas sociais brasileiros, sempre com aguçada sensibilidade.

4 comentários:

  1. Texto maravilhoso e cheio de verdade!Ela é maravilhosa e tu també,...beijos,chica

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  2. Minha querida amiga,qtas. saudades!É muito bom te ler e saber q/ estás p/ perto. bjs

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  3. Duas grandes estaturas da nossa litaratura. Que Beleza! Conheci a Marina através de "E Por Falar em Amor", há muitos anos. E conheci a Miriam há poucos anos mas é como se já fossem muitos. Adoro ambas. Abração. paz e bem.

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