O BLOG DE DEZEMBRO/2015
A árvore de Natal na casa de Cristo
AFINAL
É NATAL!
Dostoiévski
Havia num porão uma criança, um garotinho de seis anos
de idade, ou menos ainda. Esse garotinho despertou certa manhã no porão úmido e
frio. Tiritava, envolto nos seus pobres andrajos. Seu hálito formava, ao se
exalar, uma espécie de vapor branco, e ele, sentado num canto em cima de um
baú, por desfastio, ocupava-se em soprar esse vapor da boca, pelo prazer de
vê-lo se esvolar. Mas bem que gostaria de comer alguma coisa. Diversas vezes,
durante a manhã, tinha se aproximado do catre, onde num colchão de palha, chato
como um pastelão, com um saco sob a cabeça à guisa de almofada, jazia a mãe
enferma. Como se encontrava ela nesse lugar? Provavelmente tinha vindo de outra
cidade e subitamente caíra doente. A patroa que alugava o porão tinha sido
presa na antevéspera pela polícia; os locatários tinham se dispersado para se
aproveitarem também da festa, e o único tapeceiro que tinha ficado cozinhava a
bebedeira há dois dias: esse nem mesmo tinha esperado pela festa. No outro
canto do quarto gemia uma velha octogenária, reumática, que outrora tinha sido
babá e que morria agora sozinha, soltando suspiros, queixas e imprecações
contra o garoto, de maneira que ele tinha medo de se aproximar da velha. No
corredor ele tinha encontrado alguma coisa para beber, mas nem a menor migalha
para comer, e mais de dez vezes tinha ido para junto da mãe para despertá-la.
Por fim, a obscuridade lhe causou uma espécie de angústia: há muito tempo tinha
caído a noite e ninguém acendia o fogo. Tendo apalpado o rosto de sua mãe,
admirou-se muito: ela não se mexia mais e estava tão fria como as paredes.
"Faz muito frio aqui", refletia ele, com a mão pousada
inconscientemente no ombro da morta; depois, ao cabo de um instante, soprou os
dedos para esquentá-los, pegou o seu gorrinho abandonado no leito e, sem fazer
ruído, saiu do cômodo, tateando. Por sua vontade, teria saído mais cedo, se não
tivesse medo de encontrar, no alto da escada, um canzarrão que latira o dia
todo, nas soleiras das casas vizinhas. Mas o cão não se encontrava alí, e o menino
já ganhava a rua.
Senhor! que grande cidade! Nunca tinha visto nada
parecido, De lá, de onde vinha, era tão negra a noite! Uma única lanterna para
iluminar toda a rua. As casinhas de madeira são baixas e fechadas por trás dos
postigos; desde o cair da noite, não se encontra mais ninguém fora, toda gente
permanece bem enfunada em casa, e só os cães,às centenas e aos milhares,uivam,
latem, durante a noite. Mas, em compensação, lá era tão quente; davam-lhe de
comer... ao passo que ali... Meu Deus! se ele ao menos tivesse alguma coisa
para comer! E que desordem, que grande algazarra ali, que claridade, quanta
gente, cavalos, carruagens... e o frio, ah! este frio! O nevoeiro gela em
filamentos nas ventas dos cavalos que galopam; através da neve friável o ferro
dos cascos tine contra a calçada;toda gente se apressa e se acotovela, e, meu
Deus! como gostaria de comer qualquer coisa, e como de repente seus dedinhos
lhe doem! Um agente de policia passa ao lado da criança e se volta, para fingir
que não vê.
Eis uma rua ainda: como é larga! Esmagá-lo-ão ali,
seguramente; como todo mundo grita, vai, vem e corre, e como está claro, como é
claro! Que é aquilo ali? Ah! uma grande vidraça, e atrás dessa vidraça um
quarto, com uma árvore que sobe até o teto; é um pinheiro, uma árvore de Natal
onde há muitas luzes, muitos objetos pequenos, frutas douradas, e em torno
bonecas e cavalinhos. No quarto há crianças que correm; estão bem vestidas e
muito limpas, riem e brincam, comem e bebm alguma coisa. Eis ali uma menina que
se pôs a dançar com um rapazinho. Que bonita menina! Ouve-se música através da
vidraça. A criança olha, surpresa; logo sorri, enquanto os dedos dos seus
pobres pezinhos doem e os das mãos se tornaram tão roxos, que não podem se
dobrar nem mesmo se mover. De repente o menino se lembrou de que seus dedos
doem muito; põe-se a chorar, corre para mais longe, e eis que, através de uma
vidraça, avista ainda um quarto, e neste outra árvore, mas sobre as mesas há
bolos de todas as qualidades, bolos de amêndoa, vermelhos, amarelos, e eis
sentadas quatro formosas damas que distribuem bolos a todos os que se
apresentem. A cada instante, a porta se abre para um senhor que entra. Na ponta
dos pés, o menino se aproximou, abriu a porta e bruscamente entrou. Hu! com que
gritos e gestos o repeliram! Uma senhora se aproximou logo, meteu-lhe
furtivamente uma moeda na mão, abrindo-lhe ela mesma a porta da rua. Como ele
teve medo! Mas a moeda rolou pelos degraus com um tilintar sonoro: ele não
tinha podido fechar os dedinhos para segurá-la. O menino apertou o passo para
ir mais longe - nem ele mesmo sabe aonde. Tem vontade de chorar; mas dessa vez
tem medo e corre. Corre soprando os dedos. Uma angústia o domina, por se sentir
tão só e abandonado, quando, de repente: Senhor! Que poderá ser ainda? Uma
multidão que se detém, que olha com curiosidade. Em uma janela, através da
vidraça, há três grandes bonecos vestidos com roupas vermelhas e verdes e que
parecem vivos! Um velho sentado parece tocar violino, dois outros estão em pé
junto de e tocam violinos menores, e todos maneiam em cadência as delicadas
cabeças, olham uns para os outros, enquanto seus lábios se mexem; ; falam, devem falar - de verdade - e,
se não se ouve nada, é por causa da vidraça. O menino julgou, a princípio, que
eram pessoas vivas, e, quando finalmente compreendeu que eram bonecos, pôs-se
de súbito a rir. Nunca tinha visto bonecos assim, nem mesmo suspeitava que
existissem! Certamente, desejaria chorar, mas era tão cômico, tão engraçado ver
esses bonecos! De repente pareceu-lhe que alguém o puxava por trás. Um moleque
grande, malvado, que estava ao lado dele, deu-lhe de repente um tapa na cabeça,
derrubou o seu gorrinho e passou-lhe uma rasteira. O menino rolou pelo chão,
algumas pessoas se puseram a gritar: aterrorizado, ele se levantou para fugir
depressa e correu com quantas pernas tinha, sem saber para onde. Atravessou o
portão de uma cocheira, penetrou num pátio e sentou-se atrás de um monte de
lenha. "Aqui, pelo menos", refletiu ele, "não me acharão: está
muito escuro."
Sentou-se e encolheu-se, sem poder
retomar fôlego, de tanto medo, e bruscamente, pois foi muito rápido, sentiu um
grande bem-estar, as mãos e os pés tinham deixado de doer, e sentia calor,
muito calor, como ao pé de uma estufa. Subitamente se mexeu: um pouco mais e ia
dormir! Como seria bom dormir nesse lugar! "mais um instante e irei ver
outra vez os bonecos", pensou o menino, que sorriu à sua lembrança:
"Podia jurar que eram vivos!"... E de repente pareceu-lhe que sua mãe
lhe cantava uma canção. "Mamãe, vou dormir; ah! como é bom dormir
aqui!"
- Venha comigo, vamos ver a árvore de
Natal, meu menino - murmurou repentinamente uma voz cheia de doçura.
Ele ainda pensava que era a mãe, mas
não, não era ela. Quem então acabava de chamá-lo? Não vê quem, mas alguém está
inclinado sobre ele e o abraça no escuro, estende-lhe os braços e... logo...
Que claridade! A maravilhosa árvore de Natal! E agora não é um pinheiro, nunca
tinha visto árvores semelhantes! Onde se encontra então nesse momento? Tudo
brilha, tudo resplandece, e em torno, por toda parte, bonecos - mas não, são
meninos e meninas, só que muito luminosos! Todos o cercam, como nas
brincadeiras de roda, abraçam-no em seu vôo, tomam-no, levam-no com eles, e ele
mesmo voa e vê: distingue sua mãe e lhe sorrir com ar feliz.
- Mamãe! mamãe! Como é bom aqui, mamãe!
- exclama a criança. De novo abraça seus companheiros, e gostaria de lhes
contar bem depressa a história dos bonecos da vidraça... - Quem são vocês
então, meninos? E vocês, meninas, quem são? - pergunta ele, sorrindo-lhes e
mandando-lhes beijos.
- Isto... é a árvore de Natal de Cristo
- respondem-lhe. - Todos os anos, neste dia, há, na casa de Cristo, uma árvore
de Natal, para os meninos que não tiveram sua árvore na terra...
E soube assim que todos aqueles meninos
e meninas tinham sido outrora crianças como ele, mas alguns tinham morrido,
gelados nos cestos, onde tinham sido abandonados nos degraus das escadas dos
palácios de Petersburgo; outros tinham morrido junto às amas, em algum
dispensário finlandês; uns sobre o seio exaurido de suas mães, no tempo em que
grassava, cruel, a fome de Samara; outros, ainda, sufocados pelo ar mefítico de
um vagão de terceira classe. Mas todos estão ali nesse momento, todos são agora
como anjos, todos juntos a Cristo, e Ele, no meio das crianças, estende as mãos
para abençoá-las e às pobres mães... E as mães dessas crianças estão ali,
todas, num lugar separado, e choram; cada uma reconhece seu filhinho ou
filhinha que acorrem voando para elas, abraçam-nas, e com suas mãozinhas
enxugam-lhes as lágrimas, recomendando-lhes que não chorem mais, que eles estão
muito bem ali...
E nesse lugar, pela manhã, os porteiros
descobriram o cadaverzinho de uma criança gelada junto de um monte de lenha.
Procurou-se a mãe... Estava morta um pouco adiante; os dois se encontraram no
céu, junto ao bom Deus.
Escritor russo. Cursa estudos
militares, que rapidamente abandona para se dedicar à literatura. Homem
enfermiço (era epiléptico) e atormentado, tem uma vida difícil, mas no final
dos seus dias conhece a fama. De Dostoievski pode dizer-se com justiça que é um
romancista tipicamente russo e que representa na sua pessoa e na sua obra as
grandezas e misérias da Rússia. O seu pai, um personagem tenebroso e alcoólico
que morre assassinado, marca-o profundamente na sua juventude. As crises de
epilepsia também perturbam gravemente toda a sua vida. Aos vinte anos inicia a
carreira militar e aos vinte e quatro publica com êxito imediato um romance
epistolar, Pobre Gente. Em 1849, comprometido numa conspiração, é condenado à
morte; a pena é comutada por vários anos de trabalhos forçados na Sibéria. Isto
permite-lhe uma observação minuciosa dos habitantes da povoação e leva-o a
descobrir os Evangelhos, o que influi poderosamente no seu carácter. Recordações
da Casa Morta é uma terrível descrição destes anos de presídio.
Dostoievski, como outros romancistas do
seu século (Dickens, Balzac), publica as suas narrativas por fascículos em
diversos jornais. Aparece assim Humilhados e Ofendidos. O escritor viaja, luta
com a censura e leva uma vida muito activa. Em 1866 fica viúvo e escreve O
Jogador, vibrante confissão, baseada na sua própria experiência, de um homem
possuído pela paixão do jogo. Neste mesmo ano escreve Crime e Castigo. O Idiota
concede-lhe nova celebridade. O seu último grande romance é Os Irmãos
Karamazov.
O seu estilo, inconfundível,
distingue-se por uma tensão nervosa exacerbada, por uma espécie de vibração
interior. Os protagonistas são geralmente criminais, doentes ou loucos, sempre
fora da normalidade. São personagens que vivem numa crise contínua; no seu
interior produz-se uma dramática luta entre as forças do bem e do mal. Com
frequência o protagonista, humilhado sob o peso das injustiças sociais,
mostra-se a si mesmo como um bufarinheiro e parece experimentar um prazer
mórbido na sua decadência. Nesta situação é objecto de visões e alucinações que
dão ao relato um tom vibrante. O envelhecimento da pessoa, o pecado e a
redenção são outros tantos aspectos sempre presentes na obra de Dostoievski.
UM POEMA DE NATAL
Soneto de Natal
Machado de Assis
Um homem, — era aquela noite amiga,
Noite cristã, berço no Nazareno, —
Ao relembrar os dias de pequeno,
E a viva dança, e a lépida cantiga,
Quis transportar ao verso doce e ameno
As sensações da sua idade antiga,
Naquela mesma velha noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno.
Escolheu o soneto... A folha branca
Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca,
A pena não acode ao gesto seu.
E, em vão lutando contra o metro adverso,
Só lhe saiu este pequeno verso:
"Mudaria o Natal ou mudei eu?"
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