FIAT LUX
O BLOG DE DEZEMBRO/2014
SELMA LAGERLÖFF
Penetrei num mundo novo quando,na adolescência,conheci a
obra de Selma Lagerlöff;a escritora sueca me encantou ,falando de um universo
desconhecido,mas,tão cheio de magia e
povoado por criaturas fantásticas
,mitos e lendas nórdicas ,que passavam tão desapercebidas por nós,aqui no
Brasil.Dos trópicos á paisagem do norte
da Suécia,uma longa viagem !
Seu primeiro romance,”A Saga de Gösta Berling” ,que começou
a escrever enquanto ainda era professora, é uma obra – prima do romantismo,uma
descrição lírica da vida na Suécia,no sec.XIX e foi inspirada em mitos e lendas
do seu país.Ela se inscreveu num concurso literário e ganhou como prêmio a
publicação.
Na sua terra,o romance não fez sucesso até que foi
publicado na Dinamarca,sucesso de público e crítica;todos se apaixonaram pela
saga do pastor Gösta Berling,desgraçado
pela bebida e resgatado pelo amor.
O sucesso do livro e o apoio da Academia Sueca e da Família
Real permitiu que ela se dedicasse,apenas,á Literatura.
Em 1897 viajou para a Itália onde escreveu “Os Milagres do
Anticristo”,sobre a vida na Sicília.
E as viagens ao Egito e á Palestina gerou o livro “Jerusalém”,inspirado na
história verdadeira de um grupo de camponeses suecos que emigrou para a Terra
Santa.
Mas,”A Maravilhosa Viagem de Nils Holgersson,um livro
infantil,consolidou a sua fama.
Em 1909 foi a primeira mulher a receber o Prêmio Nobel e
doou a medalha para a Finlândia para ajudar seu povo a sobreviver ao bloqueio
soviético.
A MARAVILHOSA VIAGEM DE NILS HOLGERSSON
O objetivo deste livro era ensinar geografia ás crianças
suecas.Conta a história do garoto Nils que,graças ás muitas travessuras que
fazia,encolheu até ficar do tamanho de um duende e,assim,pode viajar na garupa
de um ganso por toda Suécia.A história
fala da geografia,do clima,da natureza através de uma série de aventuras
alegres e perigosas.Nils aprende sobre a amizade e o bem ,antes de voltar para casa e se
reencontrar com os pais.
É tão popular que o personagem aparece nas notas suecas de 20
UM CONTO DE NATAL
Á muito tempo, um grupo de boêmios e de artistas havia encontrado
refúgio numa velha mansão da província de Varm-land e sob o nome de cavaleiros
de Ekeby, viveram ali uma vida desenfreada de divertimentos e aventuras.
Um deles chamava-se Ruster e era um jovem músico que tocava
flauta.
De origem humilde, pobre, necessitando de um lar e de família,
conheceu tempos muito duros quando aquele alegre bando se dispersou. Já não tinha
cavalo, nem carros, nem peliça, nem um bom cesto carregado de provisões. E teve
de ir a pé de casa em casa, com uma trouxa na mão, a roupa embrulhada num
lenço, para melhor dissimular o estado do colete e da camisa. Trazia toda a
fortuna nas algibeiras: uma flauta desarmada, uma cabaça de aguardente e a
pena.
Se os bons tempos não tivessem mudado, um copista de música como
êle não teria mãos a medir, mas, ai! a gente de Varmland se desinteressava cada
vez mais das melodias e das lindas árias. Dependuravam nos celeiros as
guitarras, com as suas fitas desbotadas e as cravelhas já gastas, bem como as
buzinas de caça, com as borlas meio desfiadas e o pó amontoava-se em camadas
espessas sobre a caixa dos violinos. E à medida que a flauta e a pena de Ruster
trabalhavam menos, a garrafa, que nunca o abandonava, trabalhava mais.
Tornou-se um bêbedo incorrigível. Embora fosse recebido como um velho amigo, a
sua chegada produzia uma certa contrariedade, e a sua saída, alegria. Estava
sempre cheirando a álcool, que exalava de todos os poros, e logo ao segundo
ponche, os olhos já turvos, entabolava as conversas mais desagradáveis. Era o
eterno pesadelo das casas hospitaleiras.
Dias. antes do Natal, chegara a Lofdala, onde vivia a grande
violinista Liliécrona, que fora também cavaleiro de Ekeby e um dos mais
entusiastas daquela vida desregrada. Depois Liliécrona voltara para junto da
família, e nunca mais a deixou. Quando Ruster lhe apareceu pedindo trabalho, no
meio de toda a azáfama para os preparativos da festa, Liliécrona deu-lhe alguns
trechos de música para copiar.
— Terias feito melhor se o tivesses deixado ir — disse-lhe a
mulher; — vai prolongar o seu trabalho de tal forma que seremos obrigados a
tê-lo conosco durante o Natal.
— Em alguma parte há de o passar — respondeu Liliécrona.
E ofereceu de beber a Ruster, fazendo-lhe companhia e r ecordando
os seus dias de boêmia. No fundo, a convivência de Ruster incomodava-o um pouco
e entristecia-o, mas nada queria dizer porque, para êle, as recordações de
velhos amigos e os seus deveres hospitalares eram coisas sagradas.
Havia três semanas já que na casa de Liliécrona se faziam
preparativos para a festa do Natal; há três semanas que tudo andava numa
roda-viva, numa atividade febril. Os olhos já estavam vermelhos e cansados de
fabricar tanta vela, as mãos geladas de tanto bater cerveja no lavadouro, e, lá
embaixo, na tenda das provisões, não se parava um instante de salgar carne e de
fazer salsichas. Mas tanto os criados como a dona da casa suportavam, sem
resmungar, aquele acréscimo de trabalho, porque sabiam que, finda a tarefa e
chegada a noite santa ia baixar do céu um suavíssimo encanto que abençoaria a
todos: que as graças e os ditos alegres lhes saltariam naturalmente dos lábios,
os pés iriam ganhar asas nas danças da terra e as antigas árias e as velhas
modas esquecidas irromperiam dos recantos mais escuros da memória. E que
alegres se sentiriam então!
Mas, quando viram chegar o jovem Ruster, tanto a dona da casa,
como as criadas e as crianças, todos pensaram que êle lhes vinha estragar a
noite de Natal.
A presença de Ruster pesava-lhes no coração. Receavam que
Liliécrona ao impulso de lembranças revolvidas sentisse despertar a sua vocação
nômada e que o grande violinista, que outrora não podia estar muito tempo ao
lado dos seus, se perdesse novamente para a família. E como se fizera amar
naqueles dois anos que tiveram a felicidade de o possuir! Dava-se a todos, era
a alma da casa, sobretudo na Noite de Natal. Sentava-se então perto da lareira,
não no sofá ou na cadeira de balanço, mas num grande banco, já poído pelo uso e
pelos anos, umas vezes contando histórias, outras, executando música, no meio
de toda a família atenta; pendente dos seus lábios e dos gestos, corria às
aventuras mais loucas e galopava através do mundo até às estréias. E a vida se
fazia grande, formosa e rica perante a irradiação daquela alma. Amavam-no assim
como se ama a noite de Natal, como se ama o sol e a primavera. Mas a presença
do jovem Ruster vinha-lhes comprometer a festa. Todas as suas canseiras para
nada serviriam se o espírito do dono se afastasse de casa. E, depois, quem
podia olhar com calma para aquele bêbedo sentado à mesa no meio da família honrada
e piedosa, cuja alegria êle estragava?
Na véspera de Natal, pela manhã, Ruster tinha acabado de copiar a
música. Falou vagamente em partir, embora tivesse intenção de ficar. Sob a
influência da má vontade geral, Liliécrona respondeu, em termos também vagos,
que talvez Ruster fizesse melhor em passar o Natal onde estava. Mas Ruster era
orgulhoso e suscetível; retorceu os bigodes e sacudiu os cabelos que se lhe
erguiam sobre a cabeça como uma nuvem negra. Que queria dizer Liliécrona? Acaso
êle, Ruster, estaria incomodando? Em todas as casas de ferreiro da região o
esperavam com cama feita e o copo cheio. Tinha tanto trabalho e tantos convites
que não sabia por onde começar.
- Muito bem, — disse-lhe Liliécrona — não te reterei.,
Depois do almoço, o jovem Ruster pediu uma peliça e uma pele
emprestadas, mandaram atrelar um trenó e recomendaram ao criado que devia
conduzi-lo que fustigasse bem o cavalo, porque o tempo ameaçava nevar.
Ninguém ali acreditava que Ruster fosse gostosamente recebido
debaixo de qualquer teto; mas afastavam de si aquele pensamento desagradável;
regozijando-se por se verem livres de tal personagem.
— Quis ir-se embora — diziam — ninguém o obrigou. — E agora,
alegremo-nos.
Todavia, quando, por volta das cinco horas, se reuniram em torno
da árvore para dançar, Liliécrona, preocupado e taciturno, não se sentou sobre
o escabelo maravilhoso nem tocou na tijela do ponche. Não se recordava da menor
dança e o seu violino não estava afinado. Teriam de cantar e dançar sem êle.
Então a mulher ficou inquieta c as crianças começaram a dar mostras de
agitação. Tudo correu mal: o serão do Natal foi um fracasso completo. O arroz
pegava-se ao fundo das caçarolas, e as candeias espirravam e cuspiam em lugar
de arder; a lenha fumegava e nas dependências da casa penetravam golfadas de ar
glacial. O criado que acompanhara Ruster, ainda não tinha regressado. A
cozinheira chorava e as criadas brigavam umas com as outras. De repente,
Liliécrona reparou que não tinham posto no pátio o molho de trigo para os
pássaros e queixou-se amargamente daquelas mulheres, que esqueciam as tradições
antigas e não tinham coração.
Mas todas compreenderam que, muito mais do que nos pássaros, era
no jovem Ruster que êle pensava, arrependido de o ter deixado partir na Noite
de Natal. Meteu-se no seu quarto, fechando a porta, e ouviram-no tocar no
violino árias estranhas, como nos tempos passados, quando sentia a casa
estreita demais para êle; árias cheias de provocação e de mofa, plenas de
torturante nostalgia.
A mulher pensava: "Amanhã ir-se-á embora, se Deus não fizer
um milagre esta noite. E aqui está como a nossa falta de hospitalidade produziu
a desgraça que tanto queríamos evitar."
*
Entretanto o jovem Ruster corria sob a tempestade. Andou de porta
em porta pedindo trabalho, mas não foi recebido em parte alguma. Nem sequer o
convidaram a descer do trenó. Uns tinham a casa cheia de convidados; outros
tinham de passar a noite em casa de pessoas amigas. Poderiam suportá-lo durante
alguns dias, em outras ocasiões, mas não numa noite de Natal. Em todo o ano não
há senão uma e as crianças preparam-se desde o outono para a gozar. Como sentar
aquele homem à mesma mesa que as crianças? E agora, que deu para beber, não
sabiam onde alojá-lo. O quarto dos criados não era suficientemente bom para êle
e o dos hóspedes era-o demasiado. E Ruster continuava o seu caminho, açoitado
pelos turbilhões de neve. O bigode, molhado, caía-lhe tristemente e os olhos
injetados já não viam; mas pouco a pouco, os vapores da aguardente que tinha
bebido dissiparam-se.
Admirado do que lhe sucedia, começou por perguntar a si mesmo qual
seria a razão disto. Seria possível que ninguém tivesse querido recebê-lo? E,
de repente, viu-se a si mesmo; viu-se tal qual era: rebaixado, uma verdadeira
ruína, um miserável, que ninguém acolhia de boa vontade.
Acabou-se tudo — disse. — Nem música para copiar, nem árias de
flauta! Ninguém no mundo tem necessidade ou compaixão de Ruster.
As rajadas sucediam-se, levantando colunas de neve, que arrastavam para o meio dos campos, num rodopio vertiginoso. Depois, cessavam, e a neve, terminada a sua dança, tornava a cair, enchendo o vazio dos fossos.
— Assim é a vida — disse Ruster consigo. — Dança–se e, depois da dança, vem a queda. Somos um pobre floco que outros flocos vêm cobrir. Mas quando chega o momento, então é que são as queixas e as lágrimas. Agora é a minha vez!
Não o preocupava saber para onde o criado o levava; para onde senão para a morte? O jovem Ruster não maldizia a flauta, nem a alegre boêmia dos tempos passados, não pensava em que teria sido melhor para êle cultivar a terra ou trabalhar em peles para calçados. Todavia lamentava não ter sido até ali senão um instrumento usado, cuja alegria nunca mais deixaria de soar falso. Não acusava ninguém. Quando a corrente está partida e a guitarra rachada, a gente desfaz-se delas. Sentia-se muito ruim, muito só, inteiramente inútil, completamente perdido: o frio e a fome matá-lo-iam naquela noite de Natal.
O trenó deteve-se, viu luzes à sua volta e ouviu vozes carinhosas. Algumas pessoas ajudaram-no a entrar numa sala bem aquecida, e fizeram-lhe beber chá quente, ao mesmo tempo que lhe tiravam a peliça; e umas mãos tépidas esfregavam-lhe os dedos enregelados e saudações de boas-vindas zuniam-lhe aos ouvidos. Sentiu-se tão atordoado que demorou pelo menos um quarto de hora a reconhecer que se encontrava em casa dos Liliécrona.
O criado, cansado de correr duma herdade para a outra, debaixo da tempestade, havia decidido regressar à casa.
Mas muito menos compreendia Ruster o acolhimento de que era alvo. Não lhe ocorreu que a sua hospedeira, cheia de compaixão ante a idéia da triste viagem que havia feito e de que todas as portas se lhe tinham fechado naquela noite de festa, esquecera as suas próprias preocupações.
Liliécrona, sempre metido no seu quarto, desconhecendo o regresso de Ruster, continuava a tocar no violino a sua música louca e selvagem.
Ruster estava sentado na sala de jantar com as crianças. Os criados, que costumavam sentar-se ali na noite de Natal, tinham ido para a cozinha como que em busca de um refúgio contra o aborrecimento que nessa noite se apossara dos seus amos. A mulher de Liliécrona aproximou-se de Ruster:
— Meu marido tocará durante toda a noite — disse — e eu tenho de tratar da ceia. Os pequenos estão sós. Quer você, Ruster, tomar conta dos dois menores?
Ruster não estava habituado a lidar com crianças. Não as encontrava nem debaixo das tendas, nem nas estalagens, nem nas orgias, nem nos caminhos da boêmia. Sentia diante delas uma grande timidez e não sabia o que dizer-lhes. Sacou da flauta e deixava-os mexer nas chaves e nos buracos. O menor, que tinha quatro anos, e o maior, que tinha seis, receberam a sua primeira lição da flauta e mostraram-se vivamente interessados.
— Este é o dó — disse *— e este, o ré.
E, pegando numa folha de papel, desenhou as notas.
— Não, não! — exclamaram eles. — Não é assim que se escreve dó.
E correram para buscar o alfabeto.
Então Ruster fêz-lhes perguntas acerca das letras. Sabiam umas, mas ignoravam outras. Seus conhecimentos não eram ainda muito extensos. Ruster, interessado no caso, sentou-os nos joelhos e julgou de seu dever completar-lhes a instrução. A mãe ia e vinha da cozinha para a sala de jantar, e escutava cheia de surpresa. Os pequenos riam, repetindo docilmente o abecedário. Mas pouco a pouco a atenção de Ruster fatigou-se, a alegria desvaneceu–se-lhe as idéias, que se tinham agitado dentro dele sob a tempestade, vieram-lhe à mente. Sim, tudo aquilo era bom e encantador, mas passageiro; nem por isso deixara de estar menos acabado e morto. E, de repente, levou as mãos à cara e começou a chorar.
A mulher de Liliécrona acorreu solícita:
— Ruster – disse — compreendo-o bem; você julga que já não tem nada a fazer no mundo. A música dá pouco e a aguardente arruína-o. Mas nem tudo está perdido.
— Oh, sim! — soluçou o jovem flautista.
— Vejamos: não seria melhor que você ensinasse as crianças a ler e a escrever? Ficar sentado junto delas como nesta noite? E quem quisesse dedicar-se a esta tarefa, não seria bem recebido em toda parte? Não são as crianças instrumentos mais sensíveis do que a flauta e o violino? Olhe bem para elas, Ruster.
— Não me atrevo »— murmurou êle, porque lhe parecia doloroso contemplar as suas almas puras através dos seus formosos olhos.
A mulher de Liliécrona começou a rir, com um riso feliz e claro.
— Em breve se acostumará, Ruster. Este ano ficará em nossa casa como mestre-escola.
Liliécrona, que ouvira a risada, saiu do quarto.
— O que há?
— Não há nada — respondeu-lhe a mulher. .— Foi Ruster que voltou e já o levei a comprometer-se a que ensinaria as crianças a ler e a escrever.
— Fizeste isso? — disse em voz baixa — fizeste isto? Mas, êle prometeu. . . ?
— Não; não prometeu nada. Mas compreenderá que é preciso privar-se de muitas coisas, quando todos os dias a gente tem de encontrar-se com os olhos das crianças. Se não fosse Noite de Natal talvez eu tivesse hesitado ou voltado atrás. Mas, quando Deus não receou pôr o seu filho, o seu próprio Filho, entre nós, pecadores, penso que posso dar aos meus filhos a ocasião de salvar uma alma.
Liliécrona não respondeu nada, mas todas as rugas do seu rosto se distenderam e tremeram. Inclinou-se para a mulher, pegou-lhe na mão e beijou-a piedosamente.
Depois gritou:
— Meninos, venham todos aqui e beijem a mão de sua mamã.
E em casa de Liliécrona houve uma noite de Natal muito alegre e feliz.
FELIZ ANO NOVO!
NOS VEREMOS EM 2015
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