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quinta-feira, 27 de outubro de 2011

PEQUENAS ALEGRIAS




J .D. Salinger ,autor do famoso livro “O Apanhador no  Campo de Centeio”,dizia que um autor só poderia  considerar  ter  escrito  um bom livro ,se o leitor,assim que terminasse a leitura,ou no meio dela,cedesse ao impulso de ligar para o escritor.
Salinger era um recluso que   adorava e cultuava a solidão.Tenho minhas dúvidas que atendesse ao telefonema.
Mas,sobre o impulso,concordo plenamente.
Eu mesma,já tive muitas vezes esse desejo.
Alguns livros,cujos temas  me  indignavam tanto,como as injustiças,por exemplo,ou os crimes contra inocentes ,ou os ensinamentos que me passavam – posso citar “Capitães de Areia”,de Jorge Amado,”Nada de Novo no Front “,de Erich Maria Remarke,”Cem Anos de Solidão”,de Gabriel Garcia Marques – os que me lembro,no momento,me impeliam ao desejo de falar com o autor e lhe dizer da minha emoção  ao ler seus escritos.
Como não podia fazê-lo,escrevia minha opinião no próprio livro,conversando surrealmente com o autor.
Pois não é que anteontem, assim que deixei o computador,cerca de meio –dia,o telefone tocou.Atendi e do outro lado da linha a pessoa que me procurava,identificou-se como um leitor que estava na cidade de Cruz das Almas,interior da Bahia,e me presenteou com essas lindas palavras:
-Estava lendo o seu livro “A Bahia de Outrora” ,aquele capítulo sobre a guerra da Independência e fiquei com os olhos cheios de lágrimas,emocionado com seu relato.
Falamos quase meia hora sobre literatura, autores e livros.
Ao terminar, não creio que esse leitor, engenheiro agrônomo  e apaixonado por livros,tenha se dado conta da alegria e emoção que me proporcionou.Pois,o compromisso do autor é com o leitor,apenas com ele.É dele,sempre,a última palavra.
Recebo muitos e-mails elogiosos sobre meu trabalho impresso ou na Internet.Mas,o tal telefonema a que se referia Salinger,esse foi a primeira vez.Espontâneo,verdadeiro,sentido.
Coisas assim fazem com que o autor queira seguir adiante.









Poema à boca fechada


Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é de outra raça.

Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vaza de fundo em que há raízes tortas.

Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.

Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais bóiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.

Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quando me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.
José Saramago


segunda-feira, 16 de agosto de 2010

CARTA PARA MINHA AVÓ ,JOSEFA




Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo – e eu acredito. Não sabes ler. Tens as mãos grossas e deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água. Viste nascer o sol todos os dias. De todo o pão que amassaste se faria um banquete universal. Criaste pessoas e gado, meteste os bácoros na tua própria cama quando o frio ameaçava gelá-los. Contaste-me histórias de aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime de morte. Trave da tua casa, lume da tua lareira – sete vezes engravidaste, sete vezes deste à luz.

Não sabes nada do mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de literatura, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de palavras práticas, um vocabulário elementar. Com isto viveste e vais vivendo. És sensível às catástrofes e também aos casos de rua, aos casamentos de princesas e ao roubo dos coelhos da vizinha. Tens grandes ódios por motivos de que já perdeste a lembrança, grandes dedicações que assentam em coisa nenhuma. Vives. Para ti, a palavra Vietname é apenas um som bárbaro que não condiz com o teu círculo de légua e meia de raio. Da fome sabes alguma coisa: já viste uma bandeira negra içada na torre da igreja. (Contaste-me tu, ou terei sonhado que o contavas?) Transportas contigo o teu pequeno casulo de interesses. E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. O teu riso é como um foguete de cores. Como tu, não vi rir ninguém.
   Saramago,menino

Estou diante de ti, e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo. Vieste a este mundo e não curaste de saber o que é o mundo. Chegas ao fim da vida, e o mundo ainda é, para ti, o que era quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não faz parte da tua herança: quinhentas palavras, um quintal a que em cinco minutos se dá a volta, uma casa de telha-vã e chão de barro. Aperto a tua mão calosa, passo a minha mão pela tua face enrijada e pelos teus cabelos brancos, partidos pelo peso dos carregos – e continuo a não entender. Foste bela, dizes, e bem vejo que és inteligente. Por que foi então que te roubaram o mundo? Mas disto talvez entenda eu, e dir-te-ia o como, o porquê e o quando se soubesse escolher das minhas inumeráveis palavras as que tu pudesses compreender. Já não vale a pena. O mundo continuará sem ti – e sem mim. Não teremos dito um ao outro o que mais importava.

Não teremos realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas palavras não são as tuas, o mundo que te era devido. Fico com esta culpa de que me não acusas – e isso ainda é pior. Mas porquê, avó, porque te sentas tu na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e dizes, com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida: “O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!”.

É isto que eu não entendo – mas a culpa não é tua.

José Saramago, in “Deste Mundo e do Outro

Publicada por Eira-Velha em 09:24